14 de jun. de 2010

Para entender a classe C


As grandes esperanças das empresas estão depositadas na emergente classe C. Uma pesquisa exclusiva mostra como esses 80 milhões de brasileiros se dividem, como se comportam - e o que compram
 Germano Lüders
Loja Todo Dia, do Wal-Mart: 
serviços como acesso à internet 
e consultas médicas para atrair 
os clientes
 
 

Revista EXAME - Durante dois anos, a subsidiária brasileira da americana Whirlpool destacou mais de 90 profissionais para trabalhar num projeto de inovação que consumiu parte significativa dos 100 milhões de dólares investidos anualmente no desenvolvimento de produtos. De engenheiros a marqueteiros, esses funcionários se dedicaram a tentar desvendar como poderiam atender a um dos sonhos de consumo da classe C: os refrigeradores frost free, equipados com mecanismo de degelo automático. Não que a tecnologia fosse exatamente nova - na verdade, ela chegou ao Brasil há pelo menos 20 anos. A dificuldade era adaptá-la a um produto que coubesse no bolso da baixa renda, já que os modelos frost free, mais sofisticados e com duas portas, custam cerca de 20% mais que geladeiras comuns do mesmo tamanho. A barreira foi transposta em outubro do ano passado, quando a Whirlpool lançou o primeiro refrigerador frost free de uma porta do mundo. Com a marca Cônsul, o produto chegou ao mercado por 1 250 reais - o mesmo preço da geladeira sem esse recurso. Desde então, segundo a empresa, o lançamento está vendendo 50% mais que os modelos tradicionais.

 "Há 15 anos, as empresas pegavam os produtos que desenvolviam para os ricos e os ‘depenavam’ para vender aos consumidores de baixa renda", diz Rodrigo Azevedo, gerente-geral de marketing para refrigeração da Whirlpool. "Hoje, para estar à frente dos concorrentes, é crucial encontrar maneiras de oferecer a esses consumidores aquilo que eles realmente desejam."

A despeito dos possíveis protestos dos politicamente corretos, a declaração de Azevedo pode ser traduzida assim: o consumidor da classe C se transformou num pobre exigente. Num movimento iniciado em 2000 - e intensificado nos últimos três anos, com o aumento da renda do brasileiro e a abundância de crédito -, esse consumidor ascendeu socialmente e passou a se deliciar com as possibilidades de consumo, tornandose o grande vetor de crescimento do mercado doméstico. Hoje, em meio à crise financeira, atender às suas demandas tornou-se ainda mais premente, já que muitas empresas acreditam que a baixa renda é que vai segurar boa parte do consumo interno. "Estamos convictos de que este será um ano muito bom para nós", diz Ricardo Patrocínio, diretor de marketing da Avon, empresa que vende produtos de beleza, sobretudo, para as classes C, D e E. As perspectivas são de que os estratos econômicos mais baixos da pirâmide social sejam mesmo os menos afetados pela crise graças a dois fatores. O primeiro: muitos desses consumidores têm a renda atrelada ao salário mínimo, que vem registrando ganhos reais desde 2003. Só neste ano o aumento foi de 5,8%. "Associe isso à queda esperada da inflação, e o resultado são milhões de consumidores de baixa renda com mais dinheiro no bolso para gastar", diz Leandro Padulla, economista da MCM Consultores.

Quanto mais miram na classe C, mais as empresas sentem a necessidade de conhecer a fundo esses consumidores. Uma pesquisa encomendada pela agência Nova S/B ao Ibope - e obtida com exclusividade por EXAME - acaba de revelar novas informações sobre esse universo. "Tendemos a ver esses consumidores como um monolito, mas isso é um erro", afirma João Roberto Vieira da Costa, sócio da Nova S/B. O primeiro passo do levantamento, iniciado em junho do ano passado, foi analisar os dados contidos em 4 500 entrevistas feitas com consumidores da classe C para o estudo Target Group Index, do Ibope Media. Os pesquisados foram homens e mulheres com idade entre 18 e 64 anos, residentes no Sul, no Sudeste e no Nordeste do país, responsáveis por, pelo menos, 50% das compras da família e com renda média mensal de 1 300 reais - um grupo de pessoas que representam cerca de 30,5 milhões de brasileiros.

Depois dessa análise, o instituto partiu para uma segunda fase. Nela, pesquisadores e funcionários da agência de publicidade monitoraram por três meses o uso que 31 homens e mulheres emergentes, com renda familiar mensal entre 1 000 e 2 500 reais, faziam de seus recursos. O objetivo era demonstrar que esse público não tem um comportamento uniforme, e sim perfis diferentes. O acompanhamento foi feito por meio de um diário de despesas, em que os consumidores anotaram seus gastos durante os meses de setembro, outubro e novembro do ano passado. A conclusão é que essa gigantesca massa de consumidores pode ser dividida em três tipos bastante distintos.

Um dos perfis que o estudo identificou é o que o Ibope e a Nova S/B batizaram de consumista. Como o próprio nome sugere, ele compra muito e por impulso - frequentemente mais do que a renda permite. É aventureiro, extrovertido, um tanto quanto vaidoso e sonhador. Acostumou-se a viver com dívidas e não se preocupa muito com isso. Muita gente o classificaria como o emergente deslumbrado com as benesses que o dinheiro pode trazer. O paulista Robson Lopes de Queiroz, de 31 anos, é o chefe de uma típica família consumista. Ele trabalha em período integral, com carteira assinada, em dois hospitais paulistas. Sua mulher, Graciane, de 29 anos, complementa a renda trabalhando informalmente como cabeleireira no bairro onde moram, Campo Limpo, na zona sul de São Paulo. Graciane e Queiroz têm dois filhos - Nicolas, de 9 anos, e Nicole, de 3. A renda familiar do casal é de cerca de 2 500 reais por mês. O valor, porém, é insuficiente para dar conta das despesas. Há quatro meses, o casal decidiu financiar a compra de um carro usado, um Fiat Brava ano 2001, e assumiu uma prestação mensal de 647 reais. Em janeiro, eles começaram a pagar também uma TV de 29 polegadas, adquirida por quase 1 000 reais, em dez prestações, na Casas Bahia - o sonho era um modelo de plasma, mas tiveram de se contentar com um televisor tradicional. Além dessas grandes aquisições, a família continua se dando ao prazer de ter pequenos luxos. "Não passo um mês sem comprar uma pecinha de roupa", afirma Graciane, entre risos. "A gente é pobre, mas é limpinho, e adora andar bem vestido." Conclusão: o casal vive postergando as dívidas do cartão de crédito e se preocupa apenas em pagar a parcela mínima da fatura. "Não conseguimos mesmo juntar dinheiro", diz Queiroz, que espera, no futuro, trocar o financiamento do Brava usado pelo de um carro zero.

É JUSTAMENTE DE OLHO em consumidores exigentes e um tanto impulsivos, como Graciane, que a subsidiária brasileira da Avon lançou, no início do ano passado, a linha de maquiagem Renew, cujos produtos têm preços, em média, 65% mais altos que os da linha Avon - a mais cara até então. A mudança é emblemática de uma nova era. Até 2007, os produtos de maquiagem mais vendidos da companhia eram os da marca Color Trend, a mais barata, com batons que podem custar menos de 4 reais. Aos poucos, o crescimento da linha Avon, cerca de 30% mais cara que a Color Trend, deixou claro que os consumidores estavam se sofisticando - e que havia uma oportunidade de mercado. Foi o impulso para o lançamento de produtos como a maquiagem Renew e o perfume Christian Lacroix Absynthe, que custa 80 reais e é o mais caro já vendido pela empresa no país. "Era inimaginável ter algo assim no catálogo há cinco anos", afirma Luis Felipe Miranda, presidente da Avon. O executivo não revela números sobre o desempenho do produto, mas um dado da concorrente Jequiti, que pertence ao grupo Silvio Santos, ajuda a farejar a pujança desse mercado. O perfume Só Você Fábio Jr., lançado pela empresa em outubro do ano passado, custa 75 reais e, sozinho, já responde por 10% das vendas da empresa de cosméticos, que faturou 75 milhões de reais em 2008.

A sofisticação dessa classe de consumidores começa a mudar até mesmo o perfil das promoções oferecidas pelas empresas. A mineira Alesat, quinta maior distribuidora de combustíveis do país, com 1 700 postos, criou em meados do ano passado um cartão de crédito para sua clientela. Para impulsionar sua utilização, a empresa acaba de lançar um programa de fidelidade feito sob medida para a baixa renda. "Não temos o percentual exato de clientes da classe C que abastecem nos nossos postos, mas sabemos que eles são maioria", diz Juscelino Sousa, vice-presidente da Alesat. A saída encontrada foi criar um programa em que o uso desse meio de pagamento pudesse ser trocado por minutos para falar em telefones celulares da operadora Claro. A regra é simples: a cada 50 reais pagos com o cartão, o cliente recebe 1 minuto de crédito. Os pontos poderão ser trocados também por minutos em celulares pós-pagos. A expectativa da Alesat, porém, é que o programa chame mesmo a atenção dos consumidores de baixa renda, que respondem por quase 70% da base de celulares pré-pagos do país - algo em torno de 87 milhões de aparelhos em operação. "Não há no mercado um programa de recompensa tão adequado a seus desejos quanto esse."

O SEGUNDO PERFIL identificado pela pesquisa é o planejador - o extremo oposto do consumista. Trata-se de um consumidor mais cauteloso, que gasta seus rendimentos com parcimônia e se mostra cético em relação à propaganda. Por se preocupar com o futuro, ele investe em sua educação e na de seus filhos. Detesta dívidas e, em alguns meses, consegue até guardar um dinheirinho. O planejador é personificado pelo baiano Jodinaldo Ubiracy de Azevedo Pinheiro, de 37 anos. Há mais de dez anos ele trabalha na Sabesp, companhia de água e saneamento de São Paulo, e hoje exerce a função de analista administrativo. Sua mulher, Marilene, é analista técnica da empresa de planos de saúde Amil. A renda mensal do casal, que tem apenas um filho, Gabriel, de 11 anos, é de cerca de 2 500 reais. Apesar de ter renda praticamente idêntica à do casal de consumistas, Pinheiro e Marilene gastam seu dinheiro de forma muito diferente. Durante quatro anos, ele pagou uma mensalidade de 350 reais para cursar administração numa faculdade paulistana. Ao acabar o curso, em dezembro de 2008, tratou de se matricular numa pós-graduação em gestão ambiental - Pinheiro arca com metade dos 229 reais do curso e o restante é bancado pela Sabesp. Neste ano, decidiu matricular o filho numa escola particular perto de sua casa. Para ele, roupas, diversão e automóvel podem esperar. "O carro até faz alguma falta nos fins de semana", diz Pinheiro. "Mas nada que justifique transformá-lo em uma prioridade para a nossa família agora." (Entre esses dois extremos - o planejador e o consumista -, o Ibope encontrou um terceiro perfil, que batizou de retraído, um sujeito que muda seu comportamento de acordo com a situação e, por isso mesmo, é ainda mais difícil de ser compreendido.)
Entender que a classe C é formada por consumidores de comportamentos tão distintos quanto Queiroz e Pinheiro é crucial para as empresas. Essa jornada, no entanto, está apenas começando. "Quando o assunto é a baixa renda, as companhias conhecem apenas a ponta do iceberg", afirma Fábio Mariano, especialista em comportamento do consumidor e professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

Algumas delas já perceberam essa vulnerabilidade. A operação brasileira da rede varejista Wal-Mart, por exemplo, trabalha com quatro perfis de consumidora de classe média. Há desde a CEO do lar, uma mulher que não trabalha fora mas administra a casa, até a prática, que trabalha fora e faz compras com o marido (quando não delega a ele essa tarefa). "Infelizmente, não temos nada parecido com isso para a consumidora de baixa renda", afirma Marcos Ambrosano, vice-presidente de operações do Wal-Mart. Chegar mais perto dessas informações é fundamental para que a empresa consiga levar a cabo seu plano de expansão no Brasil. Neste ano, boa parte do 1,6 bilhão de reais que a empresa investirá na abertura de 90 lojas no Brasil será usada nas duas bandeiras que têm como foco a classe C - a Todo Dia e a Maxxi. Também faz parte dos planos do Wal-Mart em 2009 expandir de três para dez o número de unidades da Loja da Comunidade, modelo também voltado para a baixa renda que está sendo testado há nove meses nas cidades de Salvador e Recife. Na prática, a Loja da Comunidade é uma unidade da Maxxi ou da Todo Dia que oferece aos clientes uma galeria de serviços: banco postal (uma parceria entre Bradesco e Correios que disponibiliza serviços financeiros básicos, como pagamento de contas), emissão de documentos, acesso à internet, consultas médicas, palestras e até cursos profissionalizantes. O Wal-Mart não faz a gestão dos serviços nem ganha dinheiro com eles. Ao contrário: subsidia o aluguel do espaço para que os prestadores possam oferecê-los à população por preços mais baixos. "Nosso objetivo é estabelecer vínculos com esses consumidores e, obviamente, gerar mais tráfego nas lojas", afirma Carlos Fernandes, vice-presidente da divisão especial do Wal-Mart. Por enquanto, o que a direção da rede sabe é que os serviços têm atraído, em média, 15 000 pessoas por mês. "Ainda é cedo para medir o impacto desse modelo nas vendas das lojas", diz Fernandes. "Mas foi-se o tempo em que ter apenas preço baixo era suficiente para atrair esse tipo de consumidor."

Por Ana Luiza Herzog, Revista Exame

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